sexta-feira, 18 de julho de 2008

Sobre o trabalho

Há lugares dos quais não me esqueço, embora os veja só de passagem. Na maioria das vezes, interpreto-os e catalogo-os como não-lugares, agrupando-os na minha colecção mental de espaços por onde passo mas onde nunca estou, onde não construo histórias ou memórias, onde não fico, não permaneço, não usufruo. Pela sua dimensão e imensidão, pelo contexto do diálogo que estabeleço com eles, quase sempre em viagem, estes lugares ou não-lugares vivem no meu imaginário e interagem uns com os outros, embora os reconheça, quase sempre, como espaços cheios de nada, de um vazio expressivo e sedutor. Interessam-me as histórias que não encontro e que imagino, as imagens que, se já existiram, não deixaram vestígio, a ausência e o silêncio.

O meu trabalho apresenta-se como uma interpretação desses espaços que podem ser conhecidos mas não reconhecidos ou, numa outra vertente, reconhecidos mas não identificados. Com origem indefinida, estes lugares são consequência da relação entre imagens e percursos que encontro, vejo, interpreto, descontextualizo e reinterpreto, baseando-se na dicotomia entre a apropriação do que conheço e vejo (mesmo que apenas por uma vez) e aquilo que não conheço nem garanto que exista, mas que é resultado de uma interacção de memórias. Estas vão-se acumulando ao longo de uma série de viagens de carro que são tão longas quanto enriquecedoras. O tempo dispendido numa longa viagem de carro está sempre limitado pelas circunstâncias e rapidamente se transforma em tempo a mais para espaço a menos. É um tempo particular, relativo, e qualquer modo que encontre para usufruir dele surge como um aproveitamento genial de todo o tempo que tenho. Porque num carro, numa viagem, é absolutamente normal não se fazer nada. No entanto, e nas viagens particulares que faço, normalmente com destino a competições de dança, considero esse tempo valioso para os meus momentos, para as minhas actividades. Para além de um encontro sempre inesperado, único e irrepetível com não-lugares inteiramente mutáveis pelas condições ambientais, mergulho muitas vezes nos caminhos tortuosos de uma agulha perdida no meu próximo vestido de competição. E entre bolas de cetim, flores com brilhantes e espaços que não contam história nenhuma, observados pelo canto do olho, vou construindo narrativas essenciais para o meu imaginário e para o real aproveitamento do tempo. Porque não imagino o tempo sem a acção, a sequência de momentos, a evolução de um espaço para o outro.

Em percurso, procuro sempre ver, sem necessariamente conhecer, esses lugares novos que, em concreto, não o são, porque a utilização que fazemos dela é efémera, transitória, fugaz. Sem especificidade, não definem onde estamos ou quem somos, que relações construímos, não garantem identidade ou identidades individuais. Há espaços assim por todo o lado, não apenas no meio do nada. Marc Augé definiria as auto-estradas, os aeroportos, as estações de comboio… como não-lugares[1], locais de passagem e de utilização imediata, de ausência, sem história ou identidade, sem culturas localizadas no tempo e no espaço. Nas relações ocasionais e efémeras que estabelecemos uns com os outros, nestes espaços, prevalece o estar connosco próprios e não com os outros. Nas viagens que faço, estou comummente comigo própria, com a agulha e com estes espaços de ninguém, terrenos amplos e vazios, onde nunca está ninguém. Estou com os locais de passagem que são vista das auto-estradas e das vias rápidas, os descampados com poucos restos de utilização humana. Interpreto-os, por conseguinte, como espaços sem memórias e sem identidade, procurando aproveitar as suas particularidades formais e as suas composições informais, ocasionais, que mudam com o tempo, deixadas ao acaso e sem intervenção do homem. Procuro as cores de origens variadas e mutáveis, sujeitas à subjectividade e inconstância da luz natural. Por vezes, vejo cores que me parecem novas, fico obcecada pela cor, pelas cores, pelo seu carácter imensamente relativo e mutável. Procuro linhas contínuas ou descontínuas, umas semelhantes às que vi num outro não-lugar, outras novas e que interrompem o desenho de outro espaço inventado ou interpretado. Tenho sempre para onde olhar e o que fazer. Por vezes estou, inclusive, demasiado ocupada. Sem tempo para tanto espaço…

O meu trabalho tem uma forte vertente paisagística, embora não “conte” paisagem nenhuma nem viva das histórias dos lugares. Nunca experimento nem utilizo as minhas paisagens, não as conheço para além da minha condição de observador fortuito e inesperado. Muitas vezes, encontro-as sem querer e sem me deter. Mas concedo-lhes uma importância estética e de significado para além daquela que elas aparentam ter. Procuro, sobretudo, extrair-lhes uma parte do diálogo rítmico e dinâmico que existe entre as suas formas e linhas, usando a cor como principal elemento de composição.

Independentemente do modo como os construo, destruo e volto a construir, é num contexto de descoberta e valorização destes espaços que procuro apropriar-me da sua não-identidade e, posteriormente, descontextualizá-los e reinterpretá-los. Tenciono, deste modo, atribuir a estes não-lugares uma importância formal, rítmica e quase coreográfica, aliada a um desprovimento da sua origem ou identidade. Em última instância, qualquer referência que retenha de uma qualquer longa viagem, esta nunca deixa de se associar a outros momentos e a um contexto mental específico, quase sempre envolvido com o mundo da dança.

Ana Pais Oliveira

Fevereiro de 2008



[1] Augé, Marc, Não-Lugares – Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, 90º Editora, Lda, 2005.